sexta-feira, dezembro 05, 2008

Victor Hugo - Aquele que é vivo e morre, desperta e vê que é espírito


Poeta e escritor francês (1802-1885).

EU SOU UMA ALMA

O que faz o homem livre?
A alma. Quem diz livre, diz responsável.
Responsável por tudo nesta vida?
Efectivamente, não, porquanto nada há mais demonstrado do que a prosperidade possível e frequente dos maus e o infortúnio imerecido dos bons durante a sua passagem sobre a terra.
Quantos homens justos não tiveram só angústias e misérias até o seu derradeiro dia?
Quantos homens criminosos viveram até a mais extrema velhice no gozo pacífico e sereno de todos os bens deste mundo, neles incluindo a consideração e o respeito de todos!
É o homem, então, responsável depois da vida?
Evidentemente, sim, pois que não o é só durante ela. Alguma coisa, pois, dele sobrevive para submeter-se a essa responsabilidade, a alma.
A liberdade da alma explica a sua imortalidade.
A morte não é, portanto, o fim de tudo.
Ela não é senão o fim de uma coisa e o começo de outra.
Na morte o homem acaba, e a alma começa.
Tome-se por testemunho o que considerar o rosto de um ente amado com essa ansiedade estranha, feita de esperança e de desesperança.
Digam esses que atravessam essa hora fúnebre, a última alegria, a primeira do luto, digam se não é verdade que bem se sente que ainda há ali alguém que tudo não acabou?
Sente-se em roda dessa cabeça como o frêmito de asas que acabaram de expandir-se, uma palpitação confusa e inaudita flutua no ar ao redor desse coração que não bate mais.
Essa boca aberta parece chamar o que acaba de partir e dir-se-ia que deixa cair palavras obscuras no Mundo Invisível.
Eu sou uma alma.
Bem sinto que o que darei ao túmulo não é o meu Eu, o meu Ser.
O que constitui o meu eu, irá além.
Terra, tu não és o meu abismo.
O homem outra coisa não é senão um cativo.
O prisioneiro escala penosamente os muros da sua masmorra, trepa de saliência em saliência, coloca pé em todos os interstícios e sobe até ao respiradouro.
Aí, olha, distingue ao longe a campina, aspira o ar livre, vê a luz.
Assim é o homem.
O prisioneiro não duvida que encontrará a claridade do dia, a liberdade, como pode o homem duvidar se vai encontrar a Eternidade à sua saída?
Porque não possuirá ele um corpo subtil, etéreo, de que o nosso corpo humano não pode ser senão um esboço grosseiro?
A alma tem sede do absoluto e o absoluto não é deste mundo.
É por demais pesado para esta terra.
Há duas leis, a lei dos globos e a lei do Espaço.
A lei dos globos é a morte.
O limite exige a destruição.
A lei do Espaço é a Eternidade.
O Infinito permite a expansão.
Entre os dois mundos, entre as duas leis, há uma ponte, a transformação.
A ambição do vivo dos globos deve ser, pois, tornar-se um vivo do Espaço.
O mundo luminoso é o Mundo Invisível.
O Mundo do Luminoso é o que não vemos.
Os nossos olhos carnais só vêem a noite.
Ah, do que vive com os olhos abertos sobre o mundo material e com as costas voltadas para o mundo desconhecido!
A morte é uma mudança de vestimenta.
Alma, tu estavas vestida de sombra, vais ser vestida de luz.
É no túmulo que o homem faz o último progresso.
Na morte, o homem fica sendo sideral.
A morte é a vindita da alma.
A vida, é o poder que tem o corpo de manter a alma sobre a terra, pelo peso que faz nela.
A morte é o poder que tem a alma de arrebatar o corpo fora da terra pela assimilação.
Na vida terrestre, a alma perde o que irradia na vida extraterrestre, o corpo perde o que pesa.
A morte é uma continuação.
O meu olhar penetra o mais que é possível nessa sombra, onde vejo, a uma profundidade que seria amedrontadora, se não fosse sublime, dealbar-se o imenso arrebol da eternidade.
As almas passam de uma esfera para outra, tornam-se cada vez mais luz, aproximam-se cada vez mais e mais de Deus.
O ponto de junção é no infinito.
O que dorme e desperta, desperta e vê que é homem.
O vivo que morre, desperta e vê que é espírito.
*(Victor Hugo - Artigo publicado após a sua morte)*

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